27 de dezembro de 2011

Perfil e Ultimo Sonho


Frank Picini


É manhã e o sol chama um nome feminino

que pela janela lança a luz do dia

as horas firmes como braços musculados

mostram do tempo a profunda nostalgia

frutos abertos e perfumados

vestem o corpo

se pudéssemos voar seriamos gomos desses frutos

e raíz

e finalmente arvore e festa

e promessa cumprida ao céu

da terra iluminado pelo incendio do azul do mar



23 de dezembro de 2011

Sobre o teu corpo de alecrim



 
Sobre o teu corpo de alecrim

 um peixe com o meu nome

brilha no centro

não sei como exprimi-lo

mas mesmo assim

lanço uma corda aos Deuses

e trepo pela noite acima até à origem

4 de novembro de 2011

Identidade

Zabriskie Point - Michelangelo Abntonioni


Em silêncio o coração estremece a terra em que o amor amadurece

em silêncio o seu fruto irrompe do tronco onde se formam as estações

agora é a chuva que percorre as veias onde o fogo construiu a sua casa

agora o tempo é um rio luminoso

que corre para a vida e o futuro da vida

uma cama á largura do sonho onde acorda o mar

que de espuma me levanta para os dias contigo

e tu que de frente ou de costas deixas entrar o sol no corpo

o céu que atravessa a garganta e me dá a cor aos olhos

há tanto tempo meu amor

que és o meu Nome

que agora sou apenas uma nuvem comovida

fincada em ti

gota a gota

florida.

28 de outubro de 2011

A Cidade Perdida




Caminhas como um fósforo por arder

a cabeça ácida

o coração descosido

pelo gatilho do assombro

eis os dedos difusos

a mão estilhaçada

eis a arma do estremecimento

eis como palpita o revólver por dentro

um músculo dorido depois do esforço

estremece com minucia o coração

nota-se que a pele já não o protege

vislumbra-se a verdade

e o sangue

que invade as entranhas como matéria nocturna

através do tecido rasgado pela vertigem

vem à boca do céu

desprendem-se  luzes

caiem ainda vivas

sobre o rosto do mar lavrado pelo mau tempo

e o corpo assim exposto à desordem do sonho

acorda a cidade salgada

segue os teus passos

mas tu nunca chegas

nem compreendes.

18 de outubro de 2011

Partitura

Julie de Varoquier


Vou ao encontro de me esperar


onde me basta a excessiva lucidez

da invisível presença

13 de outubro de 2011

Transfiguração

Man Ray


Corríamos para a água

atirávamos para lá os corpos

para dela receberem a luminosa transparência

assim

se derramava o destino

sobre os corações e as ondas

assomavam-se agora a tempo

de na praia

desenharem as nuvens

a nossos pés.

12 de outubro de 2011

Um Rosto Rigoroso

(Ao Miguel Rovisco)



Antes da Eternidade

apareceste tu de cara destapada

de corda ao pescoço para receber o prémio

um homem dentro de um aquário pode fazer explodir o universo

debaixo de um comboio

um corpo evidenciava essa tempestade.


 

4 de outubro de 2011

O Mundo



Entre os lábios

que sabem o meu nome

eu e tu

sobre os lençóis da tarde

vem o corpo apertar-se ao poema

a língua na pele é um pormenor

com ela entramos

escrevemos

nesse corpo extraído

não à carne violenta do abraço

mas ao abismo suspenso da ferida

entre os lábios

que são dos astros as raízes da noite

e os alicerces do dia

dormindo fervilhamos

com as folhas que de sonho ardem.

30 de setembro de 2011

A Graça

Fotograma - "Au Hazard Balthazar" de Robert Bresson



Devorada a fome

já podes acordar

possivelmente já não precisarás dos ossos

para puderes incondicionalmente ser corpo

não precisarás da pele porque o coração

é a grande ponte que une a eternidade ao momento

não precisarás de ninguém excepto de todos

todos dentro de ti

todos por ti

murmúrio profundo do anjo

mãe espírito e pão

em ti.

14 de setembro de 2011

Cortas a Boca do Tempo

Jan Blencowe


Cortas a boca do tempo

para poderes dizer

a intima festa da palavra

faz-se sem o corpo

dos limites das mãos

à rebentação nos olhos

o coração é mar

as ondas perfuram o silencio

como estacas na pele

verte a maré

o sangue todo

âncora em fogo

a cabeça entre as mãos

e o sémen sentido

8 de setembro de 2011

A Flor por Dentro

Foto: Lou Reed


Há quem não queira a flor por dentro

há quem não queira o mar conjugando verbos

e sílabas contra os rochedos da minha cabeça

há quem não queira o Poeta

porque o Poeta é um grande terramoto de água

e a sua cabeça uma vida inteira e um só Poema

o Poeta inteiro é um só Poema

a lua enrola-se nos seus dedos formidável

a lua cheia de casas prodigiosas

com portas astrais abrindo ao infinito musical do firmamento.


6 de setembro de 2011

O dia da Noite




Um pássaro treme às primeiras horas do dia
acorda o corpo devorado pela violência do sonho
neste quarto cheio de gavetas
onde guardámos a memória para o último dia
se eu fosse uma ponte talvez pudesse visitar-te
mas agora tudo é diferente
levanto-me de boca salgada
calada
olho a cidade desértica
abro os braços que dão acesso ao peito
exponho os órgãos internos
já não tenho pele
não posso mentir
sou mais belo
estou mais perto de ti
tenho em mim o susto das marés
e o peso da água que se fez nuvem
flutuo como o poema
que do livro deixou a branca página
para ser o teu jardim
sou lágrima de passagem
na paisagem
serena e absoluta visão
da noite no meu coração por ti.


17 de agosto de 2011

Sei de uma Forma

Olof Grind

Sei de uma forma que em mim se desampara

no minuto imenso da breve alegria

recorda a paisagem que foi deslumbramento

luzes que só por dentro se viam

não eram terra

nem eram céu

eram a casa incendiada onde dançávamos

como estrelas que à distancia

uma para a outra brilhavam

Felizes Juntos

 Sean Marc Lee


Se quiseres podes deitar-te no meu poema
fumar o meu nome
letra a letra
aceito desfazer-me em nuvem de fumo
e dentro da tua boca
acabar ingénua e milimetricamente no infinito.

16 de agosto de 2011

Eixo do Mundo


Robert Doisneau - "The Celist"


Com o corpo em sonho

sobes a escadaria da tristeza ou da alegria

fechas a janela que dá acesso ao rosto

iluminado pela fragilidade da noite

a chuva inquieta

quebra o silencio

que à transparência do vento

precipita na liquida paisagem

a musica

que das nuvens é

o eixo profundo

do mundo.



27 de junho de 2011

Corpo Iluminado

"Vivre Sa Vie" - Jean Luc Godard


Há um grande rigor naquilo que abre a pele

uma enorme falésia onde o mar rebenta

e regressa depois à ferida que através da roupa

fina e ensopada é do sol a praia e a luz do corpo.

17 de junho de 2011

Vortex



Pedia de esmola um poema

mendigava o verdadeiro pão

partilhava o coração

para fugir ao menino assustado que era

regressava de onde sempre irá partir

absolutamente anónimo

trabalhando para a minúscula alegria

alimentava a árvore que à noite floria

como um amiga verdadeira

profundíssima na sua carne

e a arvore agradecida

era nos braços do vento a palavra

que com os seus ramos

falava ás estrelas

15 de junho de 2011

Um Pássaro Entra



"The Winged Man" - Odilon Redon



O poema precisa do mínimo conforto dos teus olhos

para o tornar vivo

bastaria um pequeno copo de água
iluminado

iluminando-me

iluminando-te

lâmpada na mais densa treva

branca lamina de luz celeste

como um lençol de estrelas

as mãos do mar

abrem a janela do dia

um pássaro entra e estilhaça-se azul.


 

9 de junho de 2011


Jeffrey Michael Harp

Os cabelos algam o rosto de mar

os olhos feridos de distancia

depenham-se pele abaixo

como um vulcão

puros e salgados

escorrem pelo coração.

8 de junho de 2011

Fragil Paisagem

Luis Beltran

A casa entardecia
a ténue luz abria a porta à língua
que movimenta-se ao longo do papel
escrevia a espuma o poema
onde de mãos dadas flutuávamos




7 de junho de 2011


Um barco inclina-se para o silencio

onde uma mulher sentada

espera dentro do poema as minhas mãos

assim seja a casa de que fugia o coração

20 de maio de 2011

Junto à Praia



Junto à praia

a palavra tomava banho

o sal da sua boca dizia

a memória que a atravessava

essa luz marítima da infância

que pontificava o horizonte com ritmos de azuis e verdes

as nuvens de rosto quase humano

devoravam sílaba a sílaba o céu

lentamente imaginavam o infinito

uma alegria breve

adormecia o corpo

depois o coração

subia alguns degraus para ver o mar estoirar.


11 de maio de 2011

"Starry Night Over The Rhine" - Vincente V. G.


A pele recolhe o amor na sua fonte

a verdade segura-o com a mão aberta onde

a água entardece prodigiosamente

arde a chuva como flor na noite humana

arde a terra que é a pele do mundo

arde a palavra no dizer desse fogo

talvez a palavra

seja o sonho que voa

quando se apagam os olhos da cidade

e se escrevem milagres na paisagem

límpida e absoluta da noite.

15 de abril de 2011

Quando a Noite

Antony Gormley

Quando a noite calmamente se enfurece

contra os lábios de madrugada

e cega a tudo dá com as suas luminosas mãos

o pão que espera o silêncio da boca

assim como a verdade o impede de ser outra vez seara

a voz trabalha a luz do silencio

nestas páginas que dizem

o salário mínimo dos amantes

migração dos corpos recebidos noutros corpos

como um grande país de liberdade

relâmpagos regulares acendem

a carne como uma guitarra pura

que de espuma

cintila por dentro

do coração

o mar

que através de mim

te canta.

18 de fevereiro de 2011

Aqueles Cujo Coração


foto: Josef Koudelka 


Aqueles cujo coração abre e fecha

Como as flores ao toque da chuva

Poderiam ser do céu um pormenor de nuvem

Ou a sua arritmia


O vento é a transparência completa do corpo


9 de fevereiro de 2011

Pedia-se ao Corpo


Pedia-se ao corpo um deserto

para instalar o coração

ultimo reduto onde se poderiam expor

à tempestade todos os órgãos

cujos pormenores

são rajadas de lâmpadas cadentes

estremecendo como estrelas nocturnas

a treva pura incorporada na pele

onde ardiam folhas

a chuva fazia o seu ninho

e adormecia

7 de fevereiro de 2011

Montanhas

"Last Days" - Gus Van Sant


 Os amigos como montanhas

cujos abraços pensamos serem a nora do nosso coração

quando á mesa cavamos o alimento para a memória

para que dela se escape um sorriso cheio de letras

desfraldadas como flores são no papel

a incandescência do poema

é sobre essas letras acesas

que se cruzam os dias apagados

e a noite com os seus dentes cravados na pele nua

seria preciso outra roupa para cobrir o corpo despido pela sua ausência.

1 de fevereiro de 2011

Lugar

"Stromboli" - Roberto Rossellini


Para corpo se contorcer em borbotões de espuma

Contra a água particularmente brilhante

Dividindo a pele suspensa no sopro da memória

e a altiva crispação das vagas

sacudindo os órgão até á extremidade da boca onde são palavras.