27 de setembro de 2010

Pedaços

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Bill Viola - "The Fall Into Paradise"


Pedaços de doçura
bátegas de água fina
luz dos olhos
cascata de alegria precipitada sobre os filhos
deitados ao comprido da vida
põem-se a escorrer poemas
gota a gota
desfraldam-se do âmago de suas mães
nascem para o primeiro dia do mundo
ressoam nas profundas cavidades do amor
depois crescem violentamente para outras mulheres
são o vento que movimenta o coração da palavra
ao abrir-se em espelho na pele mordida pela serpente da melancolia
antes da terrível dor do esquecimento
mergulhada na noite transfigurada
e quando se diz transfigurada quer-se dizer
onde o falso lugar deixou a cara pútrida
a memória desossada
que bate na areia
bate na cabeça e no ouvido do coração
bate para escutar a profundidade do mar
canta suavemente debruçada sobre as algas
rodilhas na maré alimentada pelo sonho
pequenos seixos translúcidos
feixes de luz semeados pelo vento
fios de sal
tinta de pintar navios ardentes
estruturas perplexas onde florescemos
tão esplêndidos
tão frágeis…

13 de setembro de 2010

O Corpo das Palavras















Paul Cezzane - "Nature morte avec rideau et pichet fleuri"



As palavras elevavam-se à altura dos olhos
para desvendarem o verdadeiro coração das coisas
eram crianças desembrulhados de suas mães
no nevoeiro da sua juventude
as cordas da ausência
magoavam as velas do velho barco
e o seu corpo cheio de naufrágios
era o areal onde podíamos beber da nossa fonte
a água secreta
uma linguagem que mais não era
do que o pensamento desenhado no ventre emocional
um poema encharcado de verdade consubstanciada
se ao menos a pele trespassada fosse um caminho
ou um abismo que se abismasse
e com as coisas mais inesperadas
perguntasse
e se elas fossem boas e brilhassem
como laranjas habitadas de Primavera.




7 de setembro de 2010

Chuva

Don Hong-Oai - "After Prayer"




Perfurávamos o papel branco

para que a palavra doesse ao impacto da boca

e a língua num firmamento de astros

fechada saísse para a rua

para gritar o trabalho fundo do poeta

certamente não sabíamos ainda dize-la

mas poderíamos encontrá-la

em cigarros de linho incendiados pelo sonho

ou na nuvem onde o olhar um dia

encontrou a luz da ínfima alegria

na chuva.