29 de fevereiro de 2012

Assim te Abraço

Vladimir Kush


Até que o mundo seja outro vez mundo

assim te abraço

bebo café ou tomo chá

tanto faz

para todos os efeitos

somos luzes subterrâneas

plantas internas

oceânicas

com grandes percentagens de insónia

vê-se nos meus olhos

esse mar ainda

e os teus

nalguns pedaços de cinza

24 de fevereiro de 2012

Através das Palavras uma Flor Inútil – Um Relâmpago



Ao Bernardo Ribeiro Costa
11/09/1970 – 21/2/2012


Os dias acabaram

ainda a Primavera se aproximava

tímida mas já as suas flores negras

ameaçavam a matéria tão frágil de que somos feitos

terminava assim o sofrimento debaixo das altas copas do tempo

onde tudo é menos frio que o frio de estar vivo

quanto pesa a dor dos dias sem cor?

uma infinita milésima de grama

capaz de sufocar

e para que servem todas essas flores

que assinalam a negação de tudo o que pudesse ser?

a boca sedenta de esquecimento

aniquila todas as dimensões das coisas

para que o que exista caia

se parta se veja

se evapore

e depois desapareça para sempre

e porquê ?

e para quê estar aqui?

esperando um acidente que viesse misericordioso libertar a carne da sombra

mas ele não veio

e tudo ficou nas mãos dormentes do homem

afundado na penumbra da ultima madrugada

e se a morte não fosse um veneno que pudesse gritar teu nome

e se ela não fosse tão magnética

e se ela não te telefonasse dizendo que te amava

se não te beijasse completamente nessa noite extrema

o que sobraria de ti

horror do mistério

ultimo estertor

até que a vida se partisse contra o céu num soberbo mergulho

o corpo laminado pela angústia

o corpo sem pele….

o corpo rasgado pela noite….

ó mãe ajuda o teu filho

não o deixes adormecer

não deixes que o seu sangue acabe antes do teu sangue

ó mãe não deixes porque a tua dor será infinitamente maior

e servirá apenas

para adoçar a fétida pestilência da morte

que dá á terra este rosto com os olhos abertos para dentro

desce com ele o sonho já sem nenhuma ansiedade

nessas mãos ausentes que acolhem

a treva que passa e liberta da sepultura

de um corpo morto a alma pura.


17 de fevereiro de 2012

Wild Rose



 
À flor


o que à flor pertence


não a terra


mas as estrelas


em flor


o que é celeste


na terra


é céu


10 de fevereiro de 2012

Carteira Profissional



Agora que voas

e que deixaste em paz os teus 12 leitores

agora que desapareceste como o teu cão

sem mais palavra

e mataste essa ideia perigosa de publicares livros

agora que és livre de todos os empecilhos

de todas as máquinas que te comandavam o corpo

de todas as âncoras

de todos os portos

de todos os barcos

de todos os mares

agora que és maravilhoso e atmosférico

agora que as nuvens fazem com teus dedos

frase no céu que ninguém lê

agora que o teu peso se resume

ao de uma pluma celeste

numa folha de tempo

ou a uma simples torção do vento que sonhando

 tudo divide e multiplica

agora que tudo é exponencialmente nada

mistério mais límpido que a mais pura luz

agora sim

tu és escritor

e já podes falar.


7 de fevereiro de 2012

A Madrugada

Andre Kertesz - Polaroids


A madrugada aos pedaços


mas já sem os teus passos


prepara-se para beijar de novo o dia


o mundo descalço estica os braços


para o corpo das estrelas e não te alcança


6 de fevereiro de 2012

Amargo Novembro




O vento encostava-se às casas e adormecia

 depois viam-se os brancos ossos da noite

carregarem a insónia por debaixo da porta

nesse lençol escuro procurávamos o sublime

que resplandecia ocasionalmente quando fechávamos os olhos

e a respiração acertava os passos do coração

as mãos desfraldavam-se como nuvens no céu

não esqueças as minhas mãos

e os toscos dedos que acendiam de cor os teus cabelos

para que se visse a ternura do infinito contra o peito

nada mais era preciso que o límpido sopro

da lua desfiada pelo corpo

até que sobre o pescoço já não se erguesse do rosto

demência para sonhar

a linha do horizonte

cozida á pele

como lápide de sal

masmorra de total silêncio

o sal para tudo devastar

o silêncio para sepultar

as folha de Outono

que das árvores tristes se desprendem

nas ruas de Novembro.