14 de agosto de 2009

Explicação do Poeta




A experiência do real é apenas ponto de partida na minha poesia não ponto de chegada, e teve como alavanca essencial determinados acontecimentos passados na minha infância que fomentaram em mim a auto-educação do olhar e do sentir e posteriormente o explodir da criação. Esta para se afirmar enquanto obra de arte deve esticar os limites do possível, do verosímil e do próprio real para que se inicie a caminhada em direcção à obra verdadeira.
A poesia é pois um puxar os limites até ao extremo do terrível, do terrífico e do belo, por isso os poetas só podem ter medo de magoar a quem amam nada mais. O que já não é pouco diga-se. A poesia é também caminho de superação do caos do cosmos interior a partir de uma linguagem própria, propícia e profética. É ela que alicerça o difícil caminho da purificação e da graça, eis o sentido da evolução e da realização plena.
Por vezes é preciso distancia da realidade na procura de outra realidade interna, é necessária a arte da fuga, o imenso tromp l òeil do barroco espiritual, uma espécie de janela aberta para a utopia. Sim, é possível e necessária uma nova linguagem que rompa ou irrompa no desconhecido e que liberte definitivamente o poeta das amarras impostas pela narrativa mais comum ou como suscita Max Bense, opta-se por um conceito mais progressivo que insiste na função experimentativa-Intelectual. Isto inclui um movimento constante, uma irrequietude e a consciência de que a nossa missão é única e digna de confiança e de que mais ninguém a realizará por nós. Um movimento como um matar de sede polifónico e experimental.
Tornar visível o invisível e voltar a escondê-lo num jogo intenso e incessante de memórias futuras. Trata-se de dar harmonia ao ruído, fraqueza à força para a debilitar até ser criança e novamente emergir para a sua potência vital. Assim nasce e cresce a palavra que é vida  e todos os seus múltiplos sistemas e bifurcações. Assim se trava a batalha semântica, assim se projecta a luz para a abertura do olhar inocente.
Olhar que perscruta o escuro armadilhado da matéria ausente, presentificando-a ao espectador/lenhador das palavras. Como afirma André Malraux, só a obra resiste à morte, eu acrescento que também os vampiros. Trata-se pois de sugar o sangue ao tempo de modo a que a obra mate a morte, como descreve Romain Rolland.
Então, trabalha-se uma casa de linguagem acesa que pensa a soberania das ideias. Há um corpo total neste meu pensar. A minha cabeça é um tronco consciente cheia dos meus antepassados que hão-de vir. Os meus filhos são estes lugares, a violência da obra, uma cesariana diária donde emerge a alegria da vida, a plenitude do ser.
Eu escuto essa música interna, estremeço e tão dificilmente a consigo dizer sem me desconjuntar. Mas é desses ossos partidos que se faz o verdadeiro esqueleto. É assim que sou humano, é assim que respiro. Creio no impensável que mesmo assim tem de ser pensado para encontrar a identidade, a reunião entre o pensamento e a vida. Espaço de permutas, musica, água, cor, algumas serpentes, dores e lágrimas…também.
Existe na antítese e na contradição o caminho do reencontro com a esperança. Escrever é percorrer essa trajectória que reconhece à imaginação o poder de erguer a obra contra a podridão da morte e do desespero. Repito e clamo bem alto as imensas palavras de Carlos Sequeira Costa: “Viver no bem e na beleza, no anjo e na criança, até que a vida se estanque por si mesma…” Esse é o meu designio. Espero que esse caminho me escolha a mim e me encontre numa epifania contínua e infinita até que o vazio seja preenchido pela fineza da luz e a sua tremenda fascinação. Isto é um trabalho de paixão, uma peregrinação dirigida à construção daquilo que se procura na alegria do achar. A partitura da alma, a musica da transfiguração. É preciso deixar traços na paisagem, reflexos fotográficos, marcas e cicatrizes, tal é o nosso livro, até sermos somente um vestígio no tempo, mas mesmo assim traço fantasma, matéria pulsante, um clarão musical na amplitude do sonho. E assim te beijo com os olhos limpos do sentir.
Devo isto a quem amo e quem me ama também. A quem feri nesta vida, peço, com todas as minhas forças, perdão com a humildade de quem ainda não sabe nada.

4 comentários:

Violeta disse...

Carlos
Adorei o seu texto, num todo, mas em particular destas duas passagens:
"Tornar visível o invisível e voltar a escondê-lo num jogo intenso e incessante de memórias futuras."
“Viver no bem e na beleza, no anjo e na criança, até que a vida se estanque por si mesma…”
parabéns! gostei mesmo.

Maria disse...

Hoje po meu dia é de 'não.
Voltarei depois para te reler.
Um abraço

ElsaTaveiraLourenço disse...

Um texto forte, complexo não apenas na perspectiva que se tem das palavras, da poesia, da escrita, mas também do ser em si mesmo, da realidade, da existência que nos toca e conseguimos tocar...
Gostei muito.

H. Vicente Cândido disse...

Não só este texto, mas todo o Blog merece ser lido... ou melhor, apreciado.

Excelente escolha de imagens e palavras.

Parabens..!