A experiência do real é apenas ponto de partida na minha poesia não ponto de chegada, e teve como alavanca essencial determinados acontecimentos passados na minha infância que fomentaram em mim a auto-educação do olhar e do sentir e posteriormente o explodir da criação. Esta para se afirmar enquanto obra de arte deve esticar os limites do possível, do verosímil e do próprio real para que se inicie a caminhada em direcção à obra verdadeira.
A poesia é pois um puxar os limites até ao extremo do terrível, do terrífico e do belo, por isso os poetas só podem ter medo de magoar a quem amam nada mais. O que já não é pouco diga-se. A poesia é também caminho de superação do caos do cosmos interior a partir de uma linguagem própria, propícia e profética. É ela que alicerça o difícil caminho da purificação e da graça, eis o sentido da evolução e da realização plena.
Por vezes é preciso distancia da realidade na procura de outra realidade interna, é necessária a arte da fuga, o imenso tromp l òeil do barroco espiritual, uma espécie de janela aberta para a utopia. Sim, é possível e necessária uma nova linguagem que rompa ou irrompa no desconhecido e que liberte definitivamente o poeta das amarras impostas pela narrativa mais comum ou como suscita Max Bense, opta-se por um conceito mais progressivo que insiste na função experimentativa-Intelectual. Isto inclui um movimento constante, uma irrequietude e a consciência de que a nossa missão é única e digna de confiança e de que mais ninguém a realizará por nós. Um movimento como um matar de sede polifónico e experimental.
Tornar visível o invisível e voltar a escondê-lo num jogo intenso e incessante de memórias futuras. Trata-se de dar harmonia ao ruído, fraqueza à força para a debilitar até ser criança e novamente emergir para a sua potência vital. Assim nasce e cresce a palavra que é vida e todos os seus múltiplos sistemas e bifurcações. Assim se trava a batalha semântica, assim se projecta a luz para a abertura do olhar inocente.
Olhar que perscruta o escuro armadilhado da matéria ausente, presentificando-a ao espectador/lenhador das palavras. Como afirma André Malraux, só a obra resiste à morte, eu acrescento que também os vampiros. Trata-se pois de sugar o sangue ao tempo de modo a que a obra mate a morte, como descreve Romain Rolland.
Então, trabalha-se uma casa de linguagem acesa que pensa a soberania das ideias. Há um corpo total neste meu pensar. A minha cabeça é um tronco consciente cheia dos meus antepassados que hão-de vir. Os meus filhos são estes lugares, a violência da obra, uma cesariana diária donde emerge a alegria da vida, a plenitude do ser.
Eu escuto essa música interna, estremeço e tão dificilmente a consigo dizer sem me desconjuntar. Mas é desses ossos partidos que se faz o verdadeiro esqueleto. É assim que sou humano, é assim que respiro. Creio no impensável que mesmo assim tem de ser pensado para encontrar a identidade, a reunião entre o pensamento e a vida. Espaço de permutas, musica, água, cor, algumas serpentes, dores e lágrimas…também.
Existe na antítese e na contradição o caminho do reencontro com a esperança. Escrever é percorrer essa trajectória que reconhece à imaginação o poder de erguer a obra contra a podridão da morte e do desespero. Repito e clamo bem alto as imensas palavras de Carlos Sequeira Costa: “Viver no bem e na beleza, no anjo e na criança, até que a vida se estanque por si mesma…” Esse é o meu designio. Espero que esse caminho me escolha a mim e me encontre numa epifania contínua e infinita até que o vazio seja preenchido pela fineza da luz e a sua tremenda fascinação. Isto é um trabalho de paixão, uma peregrinação dirigida à construção daquilo que se procura na alegria do achar. A partitura da alma, a musica da transfiguração. É preciso deixar traços na paisagem, reflexos fotográficos, marcas e cicatrizes, tal é o nosso livro, até sermos somente um vestígio no tempo, mas mesmo assim traço fantasma, matéria pulsante, um clarão musical na amplitude do sonho. E assim te beijo com os olhos limpos do sentir.
Devo isto a quem amo e quem me ama também. A quem feri nesta vida, peço, com todas as minhas forças, perdão com a humildade de quem ainda não sabe nada.